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Qual o papel da terapia no tratamento da obesidade?

A obesidade é uma doença crônica multifatorial que pode ser influenciada por fatores psicológicos. Quando identificada a necessidade, a psicoterapia pode contribuir em vários aspectos no processo de perda de peso, como envolver os pacientes na modificação do estilo de vida e motivá-los a alcançar o objetivo com a ajuda de equipes multidisciplinares.

Publicado em: 24 de fevereiro

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A obesidade é uma doença crônica multifatorial que pode ser influenciada por fatores psicológicos. Quando identificada a necessidade, a psicoterapia pode contribuir em vários aspectos no processo de perda de peso, como envolver os pacientes na modificação do estilo de vida e motivá-los a alcançar o objetivo com a ajuda de equipes multidisciplinares. Para falar sobre o assunto, o Saúde Não Se Pesa convidou o Dr. Daniel Martinez, psiquiatra com pós-graduação e residência médica pela Universidade de São Paulo (SP), International Fellow pela American Psychiatric Association e membro da Associação Brasileira para Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO).

SNSP - Terapia sempre deve fazer parte do tratamento da obesidade?

DR. DANIEL MARTINEZ - o ideal é a pessoa sempre contar com acompanhamento psicoterápico – com um psicólogo ou outro profissional capacitado – para o tratamento da obesidade. Isso permite que o paciente tenha mais consciência do que interfere, seja para ajudar ou atrapalhar, na evolução do tratamento. Dessa forma, a evolução acaba sendo melhor.

SNSP - Qual é, exatamente, o papel do profissional de saúde mental na avaliação e no tratamento da obesidade? Em que momento esse profissional deve começar a fazer parte do tratamento?

DR. DANIEL MARTINEZ – nós, profissionais de saúde mental, ajudamos, primeiramente, no tratamento das comorbidades. Podemos citar como exemplo um paciente com obesidade que está com sintomas de ansiedade e isso está atrapalhando a evolução do tratamento, seja porque ele está descontando a ansiedade na comida ou porque o problema dificulta a prática de atividade física ou busca por tratamento. Então, o profissional de saúde mental pode ajudar em relação a essa comorbidade, que não é a causa específica da obesidade, mas que interfere no tratamento dela.

Existem diversas outras situações, como um paciente que está depressivo e não tem ânimo para buscar uma atividade física. Quando ele se consulta com os profissionais que são recomendados, pode ser estimulado a ter autocuidado.

Em resumo, quando um transtorno mental atrapalha a evolução do tratamento da obesidade, o acompanhamento com psiquiatra, psicólogo ou outro profissional de saúde mental é sempre bem-vindo e pode ajudar a lapidar essas arestas.

 

Respondendo à segunda parte da pergunta, o profissional que está acompanhando e tratando o paciente com obesidade deve encaminhá-lo a um profissional de saúde mental quando suspeitar que alguma dessas outras doenças pode estar atrapalhando o tratamento. Ou então, quando há acesso a esse serviço – porque, com certeza, vai ajudar ter uma equipe coesa trabalhando junto. O paciente também pode questionar se não valeria a pena ele ter o acompanhamento de um psiquiatra ou psicólogo, se notar que algum desses transtornos mentais estão atrapalhando ou evitando que ele se trate como gostaria.

SNSP – Vários antidepressivos podem fazer com que o paciente ganhe peso. Visto que o excesso de peso afeta a saúde mental, também acontece de o psiquiatra, de forma inversa, encaminhar o paciente para um médico especialista no tratamento da obesidade?

DR. DANIEL MARTINEZ - com certeza. Alguns antidepressivos podem levar ao ganho de peso em longo prazo, enquanto outros, inicialmente, à perda de peso. Às vezes, a pessoa está tão desanimada que não sai da cama, não consegue fazer atividade física ou seguir o plano alimentar. Nós medicamos a pessoa, o tratamento tem o efeito esperado, o paciente é estabilizado e depois nós retiramos a medicação.

O oposto também vale: tem pacientes que nós, psiquiatras, durante o atendimento, vemos que estão acima do peso. Sabemos que a depressão é inflamatória, assim como a obesidade, o diabetes e a síndrome metabólica, e um interfere no outro. É uma via de mão dupla: você trata um lado, melhora o outro.

SNSP - Quais são os fatores comportamentais e psicossociais que podem contribuir para o desenvolvimento da obesidade?

DR. DANIEL MARTINEZ – são vários os fatores. Entre aqueles ligados ao comportamento, podemos citar um paciente que come de forma exagerada ou sem escolher os alimentos de forma nutricionalmente adequada.

Outro exemplo é o paciente que tem um estilo de vida ruim: faz muito uso de álcool – que é calórico – ou fuma muito, o que diminui sua capacidade pulmonar, podendo fazer com que ele tenha menos fôlego para o exercício e fique mais sedentário. Tudo isso leva a aumento de peso. E, se a pessoa tem mais peso, ela pode ter menos energia, cansar mais rápido, fazer menos exercício. É como um ciclo, uma coisa vai interferir na outra.

Também podemos falar da pessoa que tem uma higiene de sono ruim, fica muito nas telas, dorme mal ou pouco.

A privação de sono também contribui para o aumento da obesidade. Portanto, todo o estilo de vida pode e vai interferir na evolução ou no tratamento da obesidade.

 

SNSP - Existe algum tipo de terapia que é mais indicada para o tratamento da obesidade?

DR. DANIEL MARTINEZ – o que existe é a terapia mais indicada para aquela pessoa, naquele momento. O mais importante na terapia, independentemente da linha, é o paciente dar “match”, com o profissional. Eu brinco com os pacientes que é igual aplicativo de relacionamento: é o que encaixa melhor para cada pessoa. Em relação à linha de terapia, a terapia cognitivo-comportamental (TCC) é a que tem mais evidências de eficácia. Como ela é mais sistematizada, é mais fácil de ser estudada. Isso não quer dizer que as outras não funcionam. 

Portanto, a primeira coisa é o vínculo com o profissional. O paciente precisa perceber que a terapia está empurrando-o para frente, o ajudando a desenvolver seu potencial, a ser a melhor versão de si mesmo e a atingir o que está buscando - que pode ser desenvolvimento pessoal, tratamento da obesidade ou algum outro objetivo. Todas as linhas de psicoterapia são válidas se estiverem ajudando nisso, se houver vínculo e o paciente estiver tendo um benefício percebido.

 

SNSP - Como funciona a terapia cognitivo-comportamental no processo de emagrecimento?

DR. DANIEL MARTINEZ - o terapeuta vai ajudar a pessoa a perceber quais são os pensamentos e as ações que ela está canalizando. Às vezes, se canaliza muito na alimentação sem ter muita consciência ou tentando buscar algo. Por exemplo, é diferente a pessoa comer um pote de sorvete porque está irritada, triste, ansiosa, estressada, entediada ou porque sua única fonte de prazer é a comida. A ingesta calórica vai ser a mesma em todos os casos. Mas, se a pessoa consegue perceber qual emoção não resolvida está virando comida, conseguimos tratar a causa. Afinal, se o problema dela não for fome, comer não vai ajudar.

No processo da terapia ou nas consultas médicas, conseguimos ajudar o paciente a perceber qual emoção principal está presente, em qual horário ela surge com mais frequência e como ele está lidando com isso.

A terapia também pode ajudar o paciente a perceber se está tendo compulsão alimentar. Trazer isso para a consciência o possibilita atuar na causa e tratar melhor a patologia obesidade.

Basicamente três critérios indicam esse distúrbio alimentar:

  • Comer em quantidade muito maior do que uma pessoaem situação semelhante;
  • Episódios de perda de controle em relação à comida;
  • A forma como se come. Por exemplo, comer muito rápido, sem mastigar, escondido, comer até ficar totalmente cheio, passando mal.

 

SNSP - Quais são os impactos emocionais que a obesidade pode causar, quais os mais comuns e qual o papel da terapia nesses casos?

DR. DANIEL MARTINEZ - diversos estudos mostram que, além dos impactos na saúde física, a obesidade causa vários impactos psíquicos no paciente. Pessoas com obesidade têm pior desempenho acadêmico e se saem pior em provas cognitivas. A autoestima também diminui, seja devido a um autojulgamento ou ao julgamento dos outros.

Muitas vezes, a pessoa com obesidade sofre preconceito, o chamado estigma do peso ou discriminação pelo peso. Ela pode ser associada a características que não têm nada a ver com o peso. Isso faz com que essa pessoa tenha a autoestima diminuída, uma autoeficácia menor e outros prejuízos de performance, além de aumentar a chance de transtornos ansiosos, transtornos depressivos e compulsão alimentar.

A terapia vai ajudar o paciente a perceber se esses aspectos estão acontecendo; se o estigma está nele mesmo, foi internalizado; qual o papel da obesidade na questão que ele está enfrentando.

Também vai ajudá-lo a desenvolver estratégias para caminhar para frente, tratar tais questões e ser uma versão melhor de si mesmo.

 

SNSP - Em relação ao bullying, que é muito frequente em crianças e adolescentes, a terapia é indicada? Como ela pode ajudar no enfrentamento?

DR. DANIEL MARTINEZ – a terapia pode ajudar, primeiramente, a identificar essa situação. Se existe um ambiente no qual a pessoa se sente segura, acolhida, ela pode dividir ali coisas que não fala com ninguém. Tem criança que sofre bullying e não divide com ninguém, sofre em silêncio, sozinha. É o chamado “peso invisível do peso”. É como se ela levasse uma mochila invisível nas costas, que ninguém está vendo, mas que está pesada, difícil de carregar. Às vezes, na terapia, é possível esvaziar um pouco esse peso e ajudar o paciente a desenvolver estratégias ou buscar ajuda e recursos para que isso não aconteça novamente.

Falamos do exemplo do bullying, mas pode ser outra coisa, como autoestima acadêmica, social, relacional. Falar pode mudar tudo - esse é um dos mantras da Sociedade Brasileira de Psiquiatria. Se a gente põe para fora, reflete a respeito e alguém está olhando para isso conosco, podemos, sim, mudar o desfecho.

 

SNSP - Quais são os transtornos psiquiátricos mais frequentes associados à obesidade e qual o papel da terapia no tratamento deles?

DR. DANIEL MARTINEZ – os três principais transtornos que podem caminhar com a obesidade são ansiedade, depressão e compulsão alimentar. Vou falar sobre as características de cada um deles.

Ansiedade, em certa medida, pode ser normal – por exemplo, quando ocorre antes de um evento importante, muito esperado. Já a ansiedade patológica tem uma intensidade muito maior e gera prejuízo na qualidade de vida. Ela pode causar sintomas físicos ou mentais muito incapacitantes – se a pessoa os experimenta de maneira recorrente, precisa buscar ajuda. Os principais sintomas de ansiedade são:

    🗸 Taquicardia ou “batedeira” no peito;

    🗸 Sensação de falta de ar;

    🗸 Tremor muscular;

    🗸 Sudorese fria;

    🗸 Contratura maxilar ou bruxismo;

    🗸 Contratura cervical;

    🗸 Corpo tenso;

    🗸 Sensação de aperto no peito;

    🗸 Sensação de bola na garganta;

    🗸 Alteração gastrointestinal (gastrite nervosa, diarreia);

    🗸 Tontura;

    🗸 Pensamento muito acelerado, dificuldade de clarear as ideias e organizar o raciocínio.

Depressão, que geralmente é mais fácil de as pessoas identificarem, tem como sintomas:

    🗸 Humor deprimido (a pessoa se sente mais triste, tem choro fácil);

    🗸 Coisas que davam prazer não dão mais;

    🗸 Sensação de que o mundo está ficando mais cinzento, perdendo as cores;

    🗸 Pensamento mais lento, dificuldade de conectar as ideias;

    🗸 Queda da autoestima;

    🗸 Sensação de que o mundo não tem mais sentido – a pessoa pode até se questionar se está valendo a pena continuar fazendo as coisas;

    🗸 Descuido da higiene pessoal ou da aparência.

 

Compulsão alimentar é caracterizada pela grande ingestão alimentar em um período curto de tempo, de uma maneira exacerbada com perda de controle.

 

SNSP - Quais profissionais estão habilitados para fazer psicoterapia? O que deve ser observado ao escolher esse profissional e, em especial, para o tratamento da obesidade? 

DR. DANIEL MARTINEZ - o profissional mais capacitado e o que mais comumente faz psicoterapia é o que tem formação em psicologia, que é o psicólogo. Mas pessoas que tiveram um treinamento nessa área podem fazer terapia. Por exemplo, um médico que fez uma formação em psicoterapia pode ser um bom psicoterapeuta. A pessoa precisa ter competência técnica, logicamente precisa ter estudado o tema. Por isso, acredito que a Sociedade onde o profissional fez o treinamento ou a graduação em psicologia deve ser levada em conta.

O vínculo do paciente com o profissional também é importante, como falei anteriormente. Não adianta a pessoa ter um terapeuta extremamente capacitado, mas com quem não deu “match”, não se sente à vontade para falar e o fluxo de informação está muito ruidoso. A pessoa precisa sentir que a terapia está ajudando.

Portanto, acho que esses são os principais fatores que devem ser observados na escolha do profissional:

    🗸  Ter treinamento específico na área (validado por seus pares ou uma grande sociedade) ou uma graduação na área de psicologia, isso é, um psicólogo certificado, com registro no Conselho Regional de Psicologia (CRP);

    🗸  Ter criado vínculo.

SNSP - Uma vez incorporada ao tratamento da obesidade, é possível parar a terapia depois de algum tempo ou ela deve ser mantida?

DR. DANIEL MARTINEZ - cada caso é um caso. Imagine uma pessoa cujo ambiente externo está ótimo – ela tem bom relacionamento familiar, boa relação com os amigos, está bem satisfeita com o trabalho, faz atividade física, se alimenta bem, não está passando por tanto estresse. Talvez essa pessoa não precise, em tal momento, nem de terapia, nem de remédio para a parte de saúde mental. Agora, imagine que ela está com relação social muito disfuncional, extremamente estressada com trabalho, suporte familiar baixo, muito infeliz. Nesse caso, talvez não seja o momento de parar o acompanhamento psicoterápico ou o medicamento psiquiátrico.

Muitas vezes, a pessoa não vai fazer terapia ou tomar remédio psiquiátrico por toda a vida, mas tem gente que precisa. Temos que olhar cada caso individualmente e considerar fatores como o grau de obesidade, as questões da pessoa, o tempo que está em tratamento. A partir disso, podemos ver se, naquele momento, ela deve ou não parar a terapia.

SNSP – Tendo em vista o estigma em relação a pessoas com obesidade, como elas costumam chegar ao consultório psiquiátrico?

DR. DANIEL MARTINEZ - às vezes, a pessoa já chega aqui “derrotada”, pensando que, mais uma vez, ela tentará algo que não deu certo. Os pacientes contam que, muitas vezes, se sentem julgados pelos próprios profissionais de saúde, que colocam toda a responsabilidade do excesso de peso no paciente – dizem que ele não é dedicado, não tem motivação, não está fazendo a parte dele – em vez de enxergar a obesidade como uma condição que precisa ser tratada com o devido respeito e em parceria com o médico. Por isso, eles vão trocando de médico. Existem até artigos que mostram que o estigma do médico é igual ao da população geral.

Além de todo o preconceito da sociedade, existe o estigma do próprio paciente, que é o chamado estigma internalizado. Ele já acha que não vai conseguir só pelo fato de estar acima
do peso.

 

Ajudamos a desmistificar um pouco isso, a fazer com que o paciente olhe de uma forma mais gentil para si mesmo, focando nas suas forças. Por exemplo: “O que você já tentou fazer no passado que deu certo?”; “Você me contou que conseguiu manter o peso perdido por quase um ano, como você fez para conseguir?”; “Já tentou emagrecer, recuperou o peso e, mesmo assim, está disposto a tentar de novo, é preciso muita coragem e força de vontade”. Você foca nas forças do paciente e busca as motivações dele.

Existe a motivação interna e externa. Suponha que eu quero perder peso porque meu médico mandou ou porque minha esposa está cobrando (motivação externa). Agora, suponha que eu desejo perder peso porque quero dançar com a minha filha na festa de 15 anos dela (motivação interna). Quando surgirem as barreiras no caminho – que vão surgir – em qual caso terei mais chance de vencê-las? Quando a motivação está interna. Usamos a motivação externa também, que é muito importante, mas ela dura menos. Se o paciente percebe por que quer mudar, ele consegue vencer as dificuldades. Acho que esse é o grande truque.

 

BR22OB00204 – Fev./2023

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